Wednesday, July 25, 2012


Faz um ano que ela veio morar comigo. Para comemorar, reservei mesa em um restaurante caro e tomei cuidado para que o lugar fosse ao ar livre, porque a Marina fuma e odeia ter que se levantar para fazer isso. Um bom vinho e um menu refinado, uma música neutra ao fundo e nós dois fazendo piadas sobre tudo aquilo, sobre como os vovôs e vovós nos olhavam por cima, invejando toda aquela juventude e sexualidade ostensivas. Terminaríamos em um motel, para quebrar a rotina, e só no dia seguinte, já em casa, é que tudo voltaria ao normal.  
Passei em uma loja e comprei um casaquinho de lã azul. Marina sempre procura presentes para as amigas naquele lugar. As vendedoras a conhecem e eu não tive que escolher nada. É bem mais fácil agradar assim. Depois, pão de forma, cerveja e refrigerante na padaria. Quis uma cerveja importada, algo que desse o tom da data.
Cheguei em casa às oito da noite e foi impossível não reparar a bagunça. Eu nunca fui um sujeito lunático por limpeza e organização, mas a displicência adolescente da Marina vinha me irritando. A pia jamais estava vazia e era impossível andar pelo apartamento sem que um par de chinelos fosse visto. Camas desarrumadas e toalhas penduradas na cadeira do quarto. Eu tento fazer a minha parte, porque não sou, e juro isto, não sou o tipo machista que prefere ver tudo explodir a arrumar suas coisas. Eu lavo a louça suja quando chego do trabalho e junto as roupas dela no guarda-roupa. Não arrumo a cama porque quando saio de manhã ela ainda está dormindo. E é assim que as coisas são. Nada grave. Um pouco de bagunça não pode afetar em nada a minha vida e muito menos o meu amor.
 Então eu estou em casa e guardo a sacola do presente dentro da minha parte do armário. Dou uma geral, recolho as coisas fora do lugar, lavo uns copos e parto para o banho. Visto uma camiseta que ganhei da Marina, uma calça jeans e um tênis. Passo um perfume e sento no sofá. Vou esperá-la lendo um pouco e já tenho uma cerveja no meu copo. É preciso dizer que este momento, a cena perfeita daquele cara bem arrumado e sentado com tranqüilidade em seu sofá, foi bastante calculado. Eu sabia exatamente a cronologia dos fatos ao entrar em casa e, para que tudo desse certo, conforme meus planos, ela deveria chegar em uma hora.
Eu tenho sido engolido pela rotina. Hoje eu olho para trás, olho para os meus vinte e poucos anos, e recordo o quanto desejei estar onde estou. Tudo o que eu queria quando saí da faculdade era um pouco de estabilidade e tempo para fazer as coisas que gosto. Alguma grana para sair da casa dos meus pais e viajar nas férias. Não sinto vergonha em dizer que sou um cara mediano, porque a minha maior ambição sempre foi ter algo parecido com o que tenho agora: um apartamento financiado, um carro financiado, CDs e videogames a serem pagos no cartão de crédito e uma namorada para dividir a cama.
Mas havia alguma coisa diferente. Me encontro, e isso é um fato, um pouco entediado. Não há grandes problemas, transtornos ou preocupações existenciais. Ando meio morto, de modo que aquele dia preenchera meu tempo e esvaziara meu tédio. O que eu deveria fazer, dizia a minha mãe, era estudar para uma prova que me desse um emprego melhor ou, quem sabe, fazer outra faculdade. Mas me falta energia para isso e a verdade é que estou acomodado e apático. Além disso, estamos esperando que a Marina se forme para que possamos dar mais um passo. Não, não somos do tipo que casa. Somos do tipo que mora junto, que finge não ligar para um monte de coisas que, no fundo, ligamos e muito. Não queremos filhos agora e cogitamos a possibilidade de trocá-los por um casal de Golden Retriever. Sonhamos em passar um tempo em Londres e temos planos de morar em uma casa longe da cidade.
Eu troco Ian McEwan por uma edição da Superinteressante. Leio uma matéria que fala algo já batido a respeito do Nazismo e isso me distrai bastante. Sinto vontade de acender um cigarro, mas resisto, já que parei há dois meses e tenho me sentido muito bem com isso. Olho para o relógio: nove e vinte. A Marina deve estar chegando. Continuo lendo a revista, abro mais uma garrafa de cerveja e coloco um disco da Nina Simone.
Eu acordo assustado e desajeitado no sofá. O coração disparado como o de um garoto que se atrasou para a prova do vestibular. Olho para o relógio na parede. Dez e quinze. Automaticamente pego o celular e vejo uma mensagem dela: “Tem um aniversário aqui hoje. Vou ficar um pouco depois da aula, mas chego cedo. Bjs!”. Releio mais duas vezes e não acredito que ela esqueceu nosso dia. Xingo em voz alta, levo as mãos ao rosto, esfregando os olhos sem parar, e depois para a cabeça lançando meus cabelos para trás. Estou um pouco suado, e não sei se é de raiva ou de calor.
Pela primeira vez em quatro anos ela estava sendo relapsa em relação a nós dois e isso deveria querer dizer alguma coisa. É verdade que tudo mudou muito desde que ela veio morar comigo. Antes, quando a Marina morava com os pais, sua imagem tinha um abrigo inocente e cândido. Mas, aos poucos, fui notando que ela não era só aquilo. Ela não era só uma universitária protegida e de bons modos. Marina tem vida própria e sabe caminhar entre a doçura e o escárnio com proeza. Uma hora está debruçada em livros ou deitada no meu colo, produzindo barulhos que adoro no final de cada palavra, como se fosse um animal filhote. Outra hora está na mesa de um bar fumando e bebendo mais que eu, enquanto destila opiniões radicais a respeito de política ou arte. Sempre um pouco pedante, eu sei, mas sempre linda e definitiva. Marina é definitiva.
Quando os pais dela tiveram que voltar para o interior não pensamos duas vezes. Já estávamos namorando fazia tempo e eles não são do tipo conservador. Eu já tinha meu apartamento e tudo mais. Aquilo fazia sentido. E foi assim que aprendi a dividir tudo com ela. Aprendi a gostar da péssima macarronada que ela faz e a tolerar sua bagunça. Aprendi a ter portas batendo na minha cara e a ouvir acusações na mesa do café da manhã uma vez por mês. Aprendi que existem pessoas com mais de vinte anos que não abrem mão de um copo de Nescau e um misto quente. Aprendi a cuidar dela quando está com febre, a deixar que ela cuide de mim e a vê-la desleixada no final dos semestres.
Mas ela não estava lá. Um ano para comemorarmos e ela não estava lá. Listei mentalmente todos os seus amigos de faculdade tentando elucidar se ela poderia estar me traindo. Eu já fui um cara mais seguro. Não, eu nunca saí com as meninas mais bonitas da escola ou da faculdade, mas dificilmente eu levava um “não”. Eu sabia onde jogar. Sabia até onde eu podia ir. Era mais ou menos como só fazer um prova quando se tem certeza, por uma razão ou por outra, que você vai passar. E eu não me sinto mal com isso e acho uma babaquice o desafio pelo desafio. Ser um homem consciente de suas limitações me faz feliz. Mas eu tenho a Marina. Ela está longe de ser perfeita, mas é minha.
 Andei de um lado para o outro, bebendo rápido o que restava da cerveja e até acendi um cigarro. Eu estava puto, com medo e angustiado. Mesmo assim, não telefonei e não respondi aquela mensagem. Eu aguardaria as chegada friamente como alguém que tem a razão, de si e das coisas, nas mãos.
São onze da noite e ela entra em casa com as bochechas vermelhas de quem bebeu e um cheiro de rua que contrasta com a limpeza da casa. Ela olha para mim, sentado no sofá com uma expressão certamente condenatória, e sorri complacente.
- Você fumou? – pergunta, enquanto olha para o cinzeiro sujo na mesa de centro, encostado em um livro vermelho de capa dura sobre Gaudí. Eu ignoraria aquela pergunta.
- Você sabe que dia é hoje? – eu estava falando coisas que eu imaginei que nunca iria dizer. Eu era um imbecil.
- Quinta? O que está acontecendo?
- Um ano, Marina. Dia 14.
- Nossa. – desceu de seu pedestal, nitidamente envergonhada, e sentou-se ao meu lado no sofá branco de couro sintético. – Eu não lembrei. Me desculpa, mas por que você não disse nada?
         Resolvi que uma discussão não nos levaria a lugar algum e muito menos traria a reserva da mesa de volta. Deixei que ela me abraçasse e a beijei com pouca vontade. Aceitei suas desculpas e ri quando ela começou a fazer piadas a respeito da situação, atitude típica de quando quer desviar-se da culpa.
- Então eu vou tomar um banho e me arrumar como se fôssemos sair. Enquanto isso você pede uma pizza e abre o vinho que tivermos. Vamos fingir que estamos no restaurante e, depois, que estamos no motel.
         Na manhã seguinte, eu acordo atrasado e não tomo café e nem leio a parte de esportes do jornal. Tomo um banho apressado para tirar aquele suor engordurado e visto a roupa típica de um funcionário público. Me olho no espelho e confirmo a cara de babaca que toma conta de mim todos os dias, de segunda à sexta, das nove da manhã às seis da tarde. Lembro da noite anterior e me sinto bem melhor. Olho para Marina uma última vez. Com afeto, observo sua perna saindo dos lençóis, o braço fininho abraçando o travesseiro e o rosto escondido atrás dos cabelos embaraçados. Coloco a sacola do presente no pé da cama e saio.