Wednesday, October 10, 2012

Véspera das minhas férias. Férias que eu passarei a estudar, todo dia o dia todo. Mais uma vez, uma fase nebulosa se apresenta para mim. Não sei o que vai acontecer, onde ou com quem estarei. Estranho medo das possibilidades. Será que estou no lugar certo? Será que não sou muito jovem para tanta seriedade? Será que não sou muito velha para tantos sonhos? 
Só sei que ainda quero poder sair de casa vestindo moletom e all star, sair de inferninhos e me deparar com a luz do dia, chorar baixinho encolhida na minha cama de solteiro sem que ninguém me ache. 
Será que eu posso?

poeminha de sexta-feira

Com sua chegada anunciada

Amanheço aflita e atrapalhada

Noite mal dormida

Noite sonhando acordada

Quero te ver na porta de entrada


E no meio da madrugada

Vejo você chegar

Muito abraçada e beijada

Vou de um cochilo despertar


Então passaremos os dias

Com a maior das alegrias

Que é estar ao lado de alguém

Que só te faz o bem


Monday, August 13, 2012

Crescer


A gente sabe que a vida não é nada fácil. Não porque seu emprego está ruim, o salário é baixo ou o seu chefe pega no seu pé. Não porque aquele filme que você queria tanto assistir saiu de cartaz, porque os preços só aumentam ou porque os antibióticos te impedem de beber em um sábado. Não porque você se sente sozinho, meio feio e não tem ânimo para ir à academia. Não porque você está parado no trânsito, vive cansado e esqueceu a senha do cartão de crédito. Todas essas coisas são meras alegorias. São coisas as quais nos apegamos para não termos que encarar aquelas que realmente importam.
No fundo de cada reclamação cotidiana existe um mundo de pensamentos emaranhados que só se podem explicar através de “Isso é um saco!”, “Quero ir embora!”, “Puta que o pariu!”. São muitas as dificuldades da vida, mas é quase certo que a maior delas seja crescer. Essa coisa de crescer, além de complicada, é bastante controversa. Crescer é perturbador, desleal, desafiador e, o pior de tudo, crescer é ininterrupto. O crescimento entra pelos fundos da casa e segue correndo até o jardim da frente. Ele atravessa portas como um foguete, faz com que elas batam logo atrás, produzindo um barulho enorme e deixando muita coisa do lado que ficou.
Porém, muitas vezes, não estamos preparados para as portas que vêm a seguir e, por mais que forcemos as maçanetas, esmurremos com os punhos ou usemos um clipe para tentar entrar, acabamos vendo que as portas não são dadas a truques e batemos de cara. Isso dói e, como se não bastasse, o impacto faz com que a gente dê vários passos para trás. Então, de repente, sem mais nem menos, nos vemos ali, naquela sala que já é muito pequena, muito escura e muito fria para a gente. Uma sala hermética que deixou milhões de coisas atrás da última porta fechada e que não encontrou outras milhões de coisas na porta que não conseguiu ser aberta. Sentimos-nos presos, sem ar nos pulmões e temos a certeza de que não deveríamos estar onde estamos, que tudo deu errado e que aquela porta não se abria por culpa do chefe, do cartão de crédito, do salário que é pouco, da cerveja que não foi tomada, do dia que não nasceu ensolarado...
Enganamo-nos, pois, o fato é, e não há como esconder, que o passo ousado foi maior que as nossas pernas. Você é como a Alice gigante na terra de pequenos quando deve atravessar uma porta; É como a Alice pequena em terra de gigantes quando ainda não está preparado para a porta da frente. Se debater, gritar, reclamar? Nada disso adianta. O segredo é parar de olhar para a porta que te rejeitou e espiar o teto, que é de vidro e através do qual se pode ver o céu. O céu sim entende de crescimento, já que é infinito. 

Tuesday, August 07, 2012

O gosto do domingo

Para Art - Ele me convidou para sair e eu pensei duas vezes antes de aceitar. Para falar a verdade, ainda hoje acredito que aquele "sim" tenha tomado vida própria e pulado da minha boca. Meio oráculo aquele “sim”. Sem muita vontade, vesti uma roupa padrão para primeiros encontros, assim eleita para que eu não tivesse que me preocupar com esse tipo de coisa depois de um dia cansativo de trabalho. Jeans acompanhados de uma blusa de tecido mais fino. Algo com um decote discreto, mas perceptível se olhado de perfil. Não gosto de salto alto, mas usei uma maquiagem leve nos olhos para parecer mais bonita. Seguindo o ritual, passei um pouco de perfume no colo e nuca. Naquele dia, eu sentia uma dor de cabeça horrível. Não comia desde o almoço, chovia muito e ele já estava atrasado uns vinte minutos ou mais. “Eu deveria ter dito ‘não’”. O toque do celular interrompe o raciocínio. Ele telefonou para dizer que estava chegando e que eu podia descer. Na porta do prédio, ele me esperava do lado de fora do carro segurando um guarda-chuva. Eu me lembro de termos feito alguma piada a respeito.
Ele me levou em um restaurante alemão e pedimos uma cerveja importada. Mesmo depois de comermos, eu ainda podia sentir minha cabeça doendo. Por isso, dei corda para que ele contasse tudo sobre seu trabalho e amigos, sua vida e seus planos, sua rotina e família. Além da dor, havia o fato de eu não estar nem um pouco a fim de falar de mim. Estava tudo uma droga e eu não queria destilar frases do tipo “eu não sei o que fazer da minha vida”, “estou de saco cheio de existir” ou “está dando tudo errado” para uma pessoa que mal me conhecia. Sei lá. Às vezes não é legal demonstrar loucura, desespero e frustração. Essas coisas negativas podem ser dissipadas em comentários interessantes, afinidades musicais e banhos tomados a dois. Naquele momento, eu não podia oferecer muito e de forma intuitiva ouvi bem mais que falei. Mas ele roubou um beijo meu na área de fumantes do restaurante, colocou a mão no meu bolso para guardar o isqueiro e eu pensei que era muito cedo para toda aquela intimidade. Eu gostei. Sem muitos porquês ou poréns, eu comecei a me sentir feliz ao lado dele.
Daquele dezembro até o janeiro seguinte, nos encontrávamos todos os finais de tarde. Encontros despretensiosos marcados na esquina entre meu trabalho e a casa dele. De mãos dadas, perambulávamos pelas ruas a procura de cafés onde pudéssemos esperar o tempo passar e o trânsito melhorar um pouco. Nos finais de semana, íamos para algum bar e conhecíamos as pessoas da vida um do outro e, pouco a pouco, eu via que estávamos construindo momentos e lembranças comuns.  Suas férias acabaram. Ele teve que ir embora e ficamos assim. Ele vai, mas sempre volta. Sempre chega em uma madrugada de sexta-feira, pára o carro em frente ao meu prédio e telefona pedindo para que eu abra o portão. Ao vê-lo, o agarro pelos braços e fico ali por um tempo enquanto nos beijarmos, sempre com saudades. Vamos para o meu quarto e só saímos de lá no dia seguinte. Eu acordo antes, preparo um sanduíche e faço um café. Minhas habilidades domésticas são mais precárias que as dele e por isso não há nada de cênico nisso. Mas há algo no modo como olhamos um para o outro às vezes, no sem medo com o qual nos encaramos e na naturalidade das nossas brincadeiras que nos leva a fazer fotografias mentais de acontecimentos corriqueiros e em nada inéditos. Um pouco de tensão romântica e uma  crueldade suave acompanham o passar dos dias.
Passamos o dia sob o efeito da distância das semanas anteriores. Tardes passadas com a família, com os nossos amigos, a sós. Sobremesas fora de hora, copos e copos de cerveja, alguns cigarros e nossos gostos na boca um do outro. Tudo isso se encerra na tarde de domingo quando ele passará na minha casa para nos despedirmos. Eu acordo sem pressa, tomo um banho longo, visto um vestido de malha leve e o espero chegar. Nos abraçamos e, depois de me dar o último beijo, ele diz “você está com gosto de domingo”. E passo o resto do dia pensando em como eu queria que ele sempre sentisse o gosto do domingo em mim.

Wednesday, July 25, 2012


Faz um ano que ela veio morar comigo. Para comemorar, reservei mesa em um restaurante caro e tomei cuidado para que o lugar fosse ao ar livre, porque a Marina fuma e odeia ter que se levantar para fazer isso. Um bom vinho e um menu refinado, uma música neutra ao fundo e nós dois fazendo piadas sobre tudo aquilo, sobre como os vovôs e vovós nos olhavam por cima, invejando toda aquela juventude e sexualidade ostensivas. Terminaríamos em um motel, para quebrar a rotina, e só no dia seguinte, já em casa, é que tudo voltaria ao normal.  
Passei em uma loja e comprei um casaquinho de lã azul. Marina sempre procura presentes para as amigas naquele lugar. As vendedoras a conhecem e eu não tive que escolher nada. É bem mais fácil agradar assim. Depois, pão de forma, cerveja e refrigerante na padaria. Quis uma cerveja importada, algo que desse o tom da data.
Cheguei em casa às oito da noite e foi impossível não reparar a bagunça. Eu nunca fui um sujeito lunático por limpeza e organização, mas a displicência adolescente da Marina vinha me irritando. A pia jamais estava vazia e era impossível andar pelo apartamento sem que um par de chinelos fosse visto. Camas desarrumadas e toalhas penduradas na cadeira do quarto. Eu tento fazer a minha parte, porque não sou, e juro isto, não sou o tipo machista que prefere ver tudo explodir a arrumar suas coisas. Eu lavo a louça suja quando chego do trabalho e junto as roupas dela no guarda-roupa. Não arrumo a cama porque quando saio de manhã ela ainda está dormindo. E é assim que as coisas são. Nada grave. Um pouco de bagunça não pode afetar em nada a minha vida e muito menos o meu amor.
 Então eu estou em casa e guardo a sacola do presente dentro da minha parte do armário. Dou uma geral, recolho as coisas fora do lugar, lavo uns copos e parto para o banho. Visto uma camiseta que ganhei da Marina, uma calça jeans e um tênis. Passo um perfume e sento no sofá. Vou esperá-la lendo um pouco e já tenho uma cerveja no meu copo. É preciso dizer que este momento, a cena perfeita daquele cara bem arrumado e sentado com tranqüilidade em seu sofá, foi bastante calculado. Eu sabia exatamente a cronologia dos fatos ao entrar em casa e, para que tudo desse certo, conforme meus planos, ela deveria chegar em uma hora.
Eu tenho sido engolido pela rotina. Hoje eu olho para trás, olho para os meus vinte e poucos anos, e recordo o quanto desejei estar onde estou. Tudo o que eu queria quando saí da faculdade era um pouco de estabilidade e tempo para fazer as coisas que gosto. Alguma grana para sair da casa dos meus pais e viajar nas férias. Não sinto vergonha em dizer que sou um cara mediano, porque a minha maior ambição sempre foi ter algo parecido com o que tenho agora: um apartamento financiado, um carro financiado, CDs e videogames a serem pagos no cartão de crédito e uma namorada para dividir a cama.
Mas havia alguma coisa diferente. Me encontro, e isso é um fato, um pouco entediado. Não há grandes problemas, transtornos ou preocupações existenciais. Ando meio morto, de modo que aquele dia preenchera meu tempo e esvaziara meu tédio. O que eu deveria fazer, dizia a minha mãe, era estudar para uma prova que me desse um emprego melhor ou, quem sabe, fazer outra faculdade. Mas me falta energia para isso e a verdade é que estou acomodado e apático. Além disso, estamos esperando que a Marina se forme para que possamos dar mais um passo. Não, não somos do tipo que casa. Somos do tipo que mora junto, que finge não ligar para um monte de coisas que, no fundo, ligamos e muito. Não queremos filhos agora e cogitamos a possibilidade de trocá-los por um casal de Golden Retriever. Sonhamos em passar um tempo em Londres e temos planos de morar em uma casa longe da cidade.
Eu troco Ian McEwan por uma edição da Superinteressante. Leio uma matéria que fala algo já batido a respeito do Nazismo e isso me distrai bastante. Sinto vontade de acender um cigarro, mas resisto, já que parei há dois meses e tenho me sentido muito bem com isso. Olho para o relógio: nove e vinte. A Marina deve estar chegando. Continuo lendo a revista, abro mais uma garrafa de cerveja e coloco um disco da Nina Simone.
Eu acordo assustado e desajeitado no sofá. O coração disparado como o de um garoto que se atrasou para a prova do vestibular. Olho para o relógio na parede. Dez e quinze. Automaticamente pego o celular e vejo uma mensagem dela: “Tem um aniversário aqui hoje. Vou ficar um pouco depois da aula, mas chego cedo. Bjs!”. Releio mais duas vezes e não acredito que ela esqueceu nosso dia. Xingo em voz alta, levo as mãos ao rosto, esfregando os olhos sem parar, e depois para a cabeça lançando meus cabelos para trás. Estou um pouco suado, e não sei se é de raiva ou de calor.
Pela primeira vez em quatro anos ela estava sendo relapsa em relação a nós dois e isso deveria querer dizer alguma coisa. É verdade que tudo mudou muito desde que ela veio morar comigo. Antes, quando a Marina morava com os pais, sua imagem tinha um abrigo inocente e cândido. Mas, aos poucos, fui notando que ela não era só aquilo. Ela não era só uma universitária protegida e de bons modos. Marina tem vida própria e sabe caminhar entre a doçura e o escárnio com proeza. Uma hora está debruçada em livros ou deitada no meu colo, produzindo barulhos que adoro no final de cada palavra, como se fosse um animal filhote. Outra hora está na mesa de um bar fumando e bebendo mais que eu, enquanto destila opiniões radicais a respeito de política ou arte. Sempre um pouco pedante, eu sei, mas sempre linda e definitiva. Marina é definitiva.
Quando os pais dela tiveram que voltar para o interior não pensamos duas vezes. Já estávamos namorando fazia tempo e eles não são do tipo conservador. Eu já tinha meu apartamento e tudo mais. Aquilo fazia sentido. E foi assim que aprendi a dividir tudo com ela. Aprendi a gostar da péssima macarronada que ela faz e a tolerar sua bagunça. Aprendi a ter portas batendo na minha cara e a ouvir acusações na mesa do café da manhã uma vez por mês. Aprendi que existem pessoas com mais de vinte anos que não abrem mão de um copo de Nescau e um misto quente. Aprendi a cuidar dela quando está com febre, a deixar que ela cuide de mim e a vê-la desleixada no final dos semestres.
Mas ela não estava lá. Um ano para comemorarmos e ela não estava lá. Listei mentalmente todos os seus amigos de faculdade tentando elucidar se ela poderia estar me traindo. Eu já fui um cara mais seguro. Não, eu nunca saí com as meninas mais bonitas da escola ou da faculdade, mas dificilmente eu levava um “não”. Eu sabia onde jogar. Sabia até onde eu podia ir. Era mais ou menos como só fazer um prova quando se tem certeza, por uma razão ou por outra, que você vai passar. E eu não me sinto mal com isso e acho uma babaquice o desafio pelo desafio. Ser um homem consciente de suas limitações me faz feliz. Mas eu tenho a Marina. Ela está longe de ser perfeita, mas é minha.
 Andei de um lado para o outro, bebendo rápido o que restava da cerveja e até acendi um cigarro. Eu estava puto, com medo e angustiado. Mesmo assim, não telefonei e não respondi aquela mensagem. Eu aguardaria as chegada friamente como alguém que tem a razão, de si e das coisas, nas mãos.
São onze da noite e ela entra em casa com as bochechas vermelhas de quem bebeu e um cheiro de rua que contrasta com a limpeza da casa. Ela olha para mim, sentado no sofá com uma expressão certamente condenatória, e sorri complacente.
- Você fumou? – pergunta, enquanto olha para o cinzeiro sujo na mesa de centro, encostado em um livro vermelho de capa dura sobre Gaudí. Eu ignoraria aquela pergunta.
- Você sabe que dia é hoje? – eu estava falando coisas que eu imaginei que nunca iria dizer. Eu era um imbecil.
- Quinta? O que está acontecendo?
- Um ano, Marina. Dia 14.
- Nossa. – desceu de seu pedestal, nitidamente envergonhada, e sentou-se ao meu lado no sofá branco de couro sintético. – Eu não lembrei. Me desculpa, mas por que você não disse nada?
         Resolvi que uma discussão não nos levaria a lugar algum e muito menos traria a reserva da mesa de volta. Deixei que ela me abraçasse e a beijei com pouca vontade. Aceitei suas desculpas e ri quando ela começou a fazer piadas a respeito da situação, atitude típica de quando quer desviar-se da culpa.
- Então eu vou tomar um banho e me arrumar como se fôssemos sair. Enquanto isso você pede uma pizza e abre o vinho que tivermos. Vamos fingir que estamos no restaurante e, depois, que estamos no motel.
         Na manhã seguinte, eu acordo atrasado e não tomo café e nem leio a parte de esportes do jornal. Tomo um banho apressado para tirar aquele suor engordurado e visto a roupa típica de um funcionário público. Me olho no espelho e confirmo a cara de babaca que toma conta de mim todos os dias, de segunda à sexta, das nove da manhã às seis da tarde. Lembro da noite anterior e me sinto bem melhor. Olho para Marina uma última vez. Com afeto, observo sua perna saindo dos lençóis, o braço fininho abraçando o travesseiro e o rosto escondido atrás dos cabelos embaraçados. Coloco a sacola do presente no pé da cama e saio.  

Monday, April 23, 2012


Ele entrou em casa como um foguete me procurando por todos os cômodos até me encontrar arrumando o armário do segundo quarto. Parou na trave da porta, parou sorrindo, e me disse: “Consegui o Doutorado”! Nos abraçamos, ele me ergueu do chão, ele me beijou com tanta vontade que machucou meus lábios e dentes e me levou até o nosso quarto sem deixar que houvesse hiato entre nós dois. Durante tudo o que fizemos, me senti extremamente culpada, embora não soubesse o porquê, e, depois, descobri que o fato é que aquela notícia era péssima. Não, não era péssima para ele. Era a melhor notícia em termos profissionais desde que nos conhecemos. Era péssima para mim.

A possibilidade do plano de outra pessoa se sobrepor aos meus e interferir no rumo que dou à minha vida, doeu-me instantaneamente. Acho até que não consegui disfarçar muito bem o enjôo que senti com aquilo, mas ele fingiu que não percebeu. Estava certo. Nenhuma mulher tinha o direito de tirar aquela sensação pela qual esperava há tanto tempo. Fui do quarto ao banheiro me arrastando, me olhei no espelho como alguém que estava condenado a viver a felicidade do outro, e a possivelmente jamais encontrar a sua. Não sabia bem se era aquilo, mas foi a explicação que pude dar na hora. De todo jeito, eu estava sendo uma filha da puta.

Não era a primeira vez que meu egoísmo tomava conta de tudo, devo confessar. Sempre me preocupei com minhas vontades e elas sempre foram o limite da minha bondade. Ignoro as construções maniqueístas, a não ser que estejam ao meu favor o que, em geral, só acontece de forma pontual. Mas a coisa com ele era diferente. Eu gostava dele de verdade e desejava sua felicidade intensamente. Tinha prazer em cuidar e em resolver os problemas do dia-a-dia, em tomar café ao seu lado e em dividir as cobranças da minha família com a paciência dele. Eu gostava. Essa era a certeza que fez com que fôssemos morar no mesmo apartamento e que estivéssemos juntos há quatro anos. Essa era a diferença entre ele e os outros. Era a diferença de nós dois.

Então quando eu senti aquilo, aquela sujeira emocional, eu me odiei. E o odiei também por ter abalado nossas vidas. Estava tudo no lugar: mobília, cheiro do café de manhã, nossa bagunça, almoços de domingo, nossos livros misturados e uma rotina odiosamente deliciosa da qual eu adorava reclamar. E agora eu teria que escolher entre a solidão e a apatia. Era muito para mim.

Ligar o chuveiro foi como um estalo. Está tudo errado! As coisas não são bem assim. Nós planejamos e nós lutamos por isso. Noites debruçado sob uma infinidade de papéis, ausências, sonhos. Nós desejamos essa admissão e colocamos a possibilidade dela acontecer em nossas viagens acordados. O que estava acontecendo então? Será que, no fundo, eu simplesmente não acreditava na capacidade dele? Que merda de namorada que eu sou.

A água do banho ia descendo acompanhada do meu choro. Eu me resignei a parar de pensar aquelas besteiras, porque, afinal, eu nem estava tão bem empregada assim. Mas poderia haver uma promoção. Cala a boca. Eu ia deixar as coisas seguirem durante a semana e pensar nisso tudo depois. Depois de amanhã, depois de um cigarro, depois de morrer. Eu decido depois. Torci a torneira, me sequei de qualquer jeito e abri a porta. Trocamos um olhar e foi como se eu ficasse surda para mil vozes: Iríamos juntos. 

Tuesday, April 17, 2012

Bem à sua frente estava a página em branco na tela do computador que mais parecia uma parede sufocante. A tradicional sensação de paz trazida pela cor branca estava desafiadoramente sendo substituída por uma agitação profunda, uma inquietude alarmante e um desespero orgânico. Como se não bastasse aquele estado de abobamento e a total incapacidade de seguir com coisas simples e necessárias, o tempo abafado e uma dor crônica na coluna iam se acumulando em um desconforto quase insuportável. Recorreu ao cafezinho, a abrir e fechar janelas, a bater um papo com a secretária e até ao Facebook, mas nada a fazia voltar à concentração. A verdade é que alguns dias são um saco do início ao fim. Coisas como acordar atrasado, entrar no banho e ser surpreendido por um chuveiro queimado, trânsito – mil vezes o trânsito! -, reuniões às oito da manhã, hora extra, esquecer de comprar uma lâmpada! Coisas assim se anunciam com o despertar e vão se desdobrando junto às horas. São os inferninhos cotidianos. E o tempo demora a passar, contrariando a certeza mundial de que ele voa. Ela pensa em Einstein, pensa em libélulas, pensa em revistas e no cara que conheceu no final de semana passado. Dois minutos mais. É incrível como o pensamento é rápido, e ela também pensa nisso. Deseja ter coragem para inventar um grave mal estar, um falecimento ou outra coisa que a leve para casa, mas o máximo que consegue é pedir uma licença para ir até a farmácia comprar um remédio para dor de cabeça. É claro que sim. Desce do oitavo ao térreo pelas escadas e se diverte com os passos curtos e rápidos que dá, como gostava de fazer na infância. Atravessou a porta e pisou na rua. Um vento. Bem melhor. Ia dar uma volta no quarteirão, haveria de ser o tempo certo de uma corrida na farmácia. Direita ou esquerda? Deu uma meia volta involuntária, corpo para um lado, pés para o outro, e seguiu pela direita. Chuva. Tempo abafado só pode dar nisso! Ergueu um pouco o rosto para sentir as gotas daquela chuva fininha refrescando suas bochechas e a parte descoberta de seu pescoço e de seu colo. Aquele cheiro de mato com água, as pessoas correndo de um lado para o outro com uma urgência apocalíptica e ela sem a menor pressa para voltar ao trabalho. Cruzando a última esquina, pensou em Einstein de novo.

Monday, April 16, 2012

Juju e Tatá acordariam cedo. Seria um daqueles dias de Sol, um daqueles dias em que o calor está insuportável, mas que trazem e levam a todo o momento um ventinho bom que abraça o corpo. Seria uma terça-feira de dar inveja em qualquer sábado! Sem ao menos cogitar comer qualquer coisa, as duas pulariam da cama para o banheiro, do banheiro para o armário e do armário para a porta da rua. Tomariam o ônibus, sentar-se-iam nos banquinhos mais altos, falariam besteira e ririam baixinho, baixinho, baixinho... zzz. Ainda estava longe. Depois, era a praia e o céu. Infinitos azuis que se misturam e se confundem um com o outro , outro com um e com os olhos claros das meninas. Natureza e homem seriam uma só coisa naquele dia. Pensamentos inexistiriam. Só haveria o azul, o imenso azul aquarelado e embalador dos mais doces desejos...

Calor

Calor. Vou derretendo e aos poucos tenho a sensação de que meu corpo já está desmaterializado. Ele todo no chão, rastejando e suportando a cópia de minha imagem apática vagando por aí. Todos falam sobre a miséria. A miséria se reproduz a cada minuto para mim. Não penso, não como, não durmo. Estou meio morto, meio vivo. Às vezes sinto que não estou aqui. Mas é nessa hora que alguém me chama, me encosta e me cobra o dinheiro devido. E aí eu penso que tudo seria melhor se eu não estivesse mesmo aqui. Meio etéreo, meio vago, meio desmaiado. Agora, eu olho pela janela a floresta cinza, o cenário dos dias, ouço o barulho ensurdecedor da construção ao lado e respiro o ar quente que circula na sala. Calor, miséria, dívida. Nisso tudo, pisco os olhos secos e volto, porque é preciso trabalhar.

Friday, April 13, 2012

Solidão

Solidão. Entrou naquele pedaço de qualquer coisa, meio escuro e muito sujo, pediu o que queria, ou melhor, pediu o que precisava e já ali puxou o fogo fixado à parede por um fio – sempre por um fio – e acendeu o cigarro, de filtro branco, pois saúde não é brincadeira. Seguiu caminhando na direção esquerda, muito incomodado com os cabelos que lhe cobriam os olhos e faziam cócegas nas bochechas, no vai-e-vem displicente do vento. Este, o vento, estava imperativo ao ponto de parecer conduzir os passos daquele garoto, que desvirtuava-se de seu rumo ao prazer da distração e da observação das folhas nas árvores, nos pedacinhos de conversa dos transeuntes e dos decotes gulosos das mulheres. Tudo passa, é o que dizem. Mas se fosse verdade que tudo passa não haveria razão para coisa alguma, não haveria esforço, não haveria planos, não haveria faculdade, aliança de casamento, chá de bebê ou retrô. Pode até ser que tudo passe, mas essa porra dessa solidão não passa nunca. O constante vazio e o desespero de se saber mortal. Noite passada o garoto dormiu no conforto dos seus sonhos, acreditando muito mais, tendo muito mais prazer e achando de verdade que isso podia fazer algum sentido. Mas com a manhã, o café, o espelho e a escova de dente, as ilusões perdem lugar e a única coisa que se pode fazer é fumar um cigarro, mas não tinha.